Período de estiagem na Amazônia se estendeu, ao mesmo tempo em que a estação seca se adiantou — Foto: AMANDA PEROBELLI-REUTERS
Depois do Pantanal e do Cerrado, a Amazônia também bate recorde de queimadas no primeiro semestre deste ano.
Até domingo (07/07), foram detectados pelo Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 14.250 focos de calor no bioma.
É o maior número em duas décadas para o primeiro semestre, e um aumento de 60% em relação ao mesmo período do ano passado.
O presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, explica que os focos de calor geram um alerta, mas, para mensurar o estrago, é preciso saber o tamanho da área queimada.
“Às vezes, o mesmo incêndio gera para o satélite centenas de focos de calor”, diz Agostinho à BBC News Brasil.
Ainda assim, alguns Estados estão sob alerta maior. Roraima, de acordo com Agostinho, é o que se encontra em situação mais crítica dentro do bioma amazônico hoje.
Das detecções de fogo por satélites, 33% estão ali, ou 4.627 focos, o maior número desde o início da série histórica medida pelo Inpe, em 1998.
“A temporada seca lá ocorre em novembro e dezembro, mas se arrastou até março deste ano”, explica o presidente do Ibama.
Na mesma esteira, o Mato Grosso, que abriga os biomas da Amazônia, Cerrado e Pantanal, apresentou o maior número de focos de incêndio de todo o país, batendo um recorde de vinte anos.
A Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema-MT) afirmou em nota que "o Estado sofre com estiagem severa e baixa umidade desde o fim do ano passado e, com isso, o material orgânico seco oriundo da vegetação se acumula, o que tem facilitado a combustão".
A secretaria também apontou que o governo do Estado investe, neste ano, R$ 74 milhões na execução do Plano de Ação de Combate ao Desmatamento Ilegal e Incêndios Florestais.
A capacitação de brigadistas e bombeiros, monitoramento em tempo real dos focos de queimadas, a construção de açudes e perfurações de poços, assim como a substituição de pontes de madeira por concreto, são parte das ações do plano.
A BBC News Brasil procurou também a Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (FEMARH) de Roraima, mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.
Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), explica que o déficit hídrico do ano passado no bioma junto à antecipação da estação seca ocorrida neste ano deixaram a vegetação muito inflamável.
"Passei por algumas regiões do Mato Grosso recentemente e pude perceber que a vegetação já formou aquela cama de folhas secas no chão, algo que costuma ocorrer no final de julho, início de agosto", explica Alencar.
"A região de Santarém [no Pará] também. E ali começa a secar geralmente em setembro, outubro".
Diante do cenário de antecipação da seca, Agostinho afirma que as operações para o segundo semestre estão sendo intensificadas.
No caso da Amazônia, de acordo com o presidente do Ibama, as ações serão voltadas principalmente para o cinturão do desmatamento, "onde a área degradada é propícia para os incêndios".
O cinturão (ou arco) do desmatamento é o nome dado a uma extensão de cerca de 500 km2 de terras que vão desde o leste e o sul do Pará em direção a oeste, passando pelo Mato Grosso, Rondônia e Acre.
É nesta região onde ocorre a maioria do desmatamento na Amazônia.
A seca fez com que o Pantanal perdesse somente neste ano 5% da sua área, segundo Agostinho — Foto: USLEI MARCELINO-REUTERS
O governo federal anunciou na semana passada uma queda de 38% no desmatamento da Amazônia no primeiro semestre deste ano.
Entre 2022 e 2023, a redução havia sido ainda mais significativa, de 50%, segundo dados oficiais.
Ao fazer o anúncio, na quarta-feira (4/7), a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), disse ter “esperança” de chegar ao desmatamento zero no bioma até 2030, uma promessa feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A preservação da floresta é fundamental para mitigar os estragos causados pelo fogo, de acordo com Ane Alencar.
“Percebemos que, onde houve a redução do desmatamento também houve queda nas queimadas e nos incêndios no ano passado”, diz a diretora do Ipam.
“Ainda bem que houve um esforço forte para reduzir o desmatamento no ano passado. Essa redução impediu que a área afetada por incêndios fosse muito maior.”
Além das questões climáticas, que podem ser incontroláveis, mas já podem ser, em grande parte, previstas, o desmatamento é considerado pelos ambientalistas peça fundamental para o alastramento do fogo.
“Quando alguém derruba uma floresta, na sequência põe fogo”, diz Agostinho.
“Mas, muitas vezes, o sujeito derruba 100 hectares, põe fogo, mas o fogo se alastra e queima outros 500 hectares.”
Além disso, a área desmatada, muitas vezes, é uma terra pública, o que dificulta a identificação e punição dos responsáveis do local, segundo o presidente do Ibama.
No ano passado, a Amazônia sofreu uma seca histórica, em decorrência das mudanças climáticas em um ano de El Niño, fenômeno caracterizado pelo aquecimento anormal e persistente das águas do Pacífico na linha do Equador.
“A mudança na temperatura do oceano Pacífico Equatorial acarreta efeitos globais nos padrões de circulação atmosférica, transporte de umidade, temperatura e precipitação”, disse o Inpe em um comunicado.
Ou seja, seus impactos são diferentes para cada região do país: no Rio Grande do Sul, causou altos volumes de chuva. Na Amazônia, foi o contrário.
“É importante destacar que não tivemos só o El Niño”, lembra Alencar.
“O El Niño foi potencializado por uma onda de aquecimento do globo que também impactou o oceano Atlântico e potencializou seus efeitos.”
Neste cenário, a seca do ano passado já havia deixado a região vulnerável aos incêndios.
Em 2023, o bioma perdeu para o fogo uma área de extensão pouco maior que Portugal.
No total, foram queimados 10,7 milhões de hectares, um aumento de 35% em relação a 2022, de acordo com os dados da plataforma do Inpe.
A Agência Nacional Atmosférica e Oceânica dos Estados Unidos previa que o El Niño terminaria em junho deste ano, já que, normalmente, o fenômeno dura entre 9 e 12 meses.
Suas consequências, no entanto, devem se estender na Amazônia, já que ele termina quando a estação seca, de fato, deveria começar.
Alencar lembra que, embora a mistura das mudanças climáticas com o El Niño contribuam para a condição de um solo altamente inflamável, a Amazônia não é um bioma que queima naturalmente.
“A resposta do fogo, principalmente na Amazônia, onde o fogo deveria ser algo raro, deve-se a uma fonte de ignição primordialmente humana”, explica.
“E, para combatê-la é preciso estabelecer uma estratégia de comando e controle, com operações conjuntas de vários órgãos, instituições, e multas e responsabilizações cada vez mais sofisticadas."
De acordo com o Código Florestal, o uso do fogo é permitido em situações bem específicas.
Dentre elas, estão a agricultura de subsistência exercida por populações tradicionais e indígenas, as atividades de pesquisas científicas ou de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais.
Neste caso, a prática é chamada de queima controlada e requer autorização prévia, além de exigir uma série de requisitos, como a delimitação da área que será queimada e do acompanhamento por uma equipe treinada.
Cabe aos Estados emitir a autorização e, se necessário, determinar um período proibitivo para a prática, considerando fatores que favorecem a disseminação do fogo, como umidade do ar, temperatura e ventos.
No Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde está presente 65% do Pantanal, as queimas controladas estão proibidas desde o início de junho.
Por meio de uma portaria, o Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul), vinculado ao governo estadual, tornou sem efeito todas as autorizações emitidas e ainda não executadas para queima controlada.
A tramitação de processos de licenciamento e a emissão de novas autorizações do gênero também foram suspensas.
Já o incêndio florestal é caracterizado pelo fogo descontrolado que avança sobre qualquer forma de vegetação e pode resultar em autuações, caso os responsáveis sejam identificados.
De acordo com a Lei dos Crimes Ambientais, as queimadas e incêndios florestais podem render uma multa de até R$ 7,5 mil por hectare queimado e até seis anos de prisão.
Além de conter o fogo, identificar os criminosos é um ponto nevrálgico da crise que se instalou no Pantanal.
O bioma tem enfrentado incêndios em proporções recordes nos últimos anos, incluindo em 2024. De acordo com o presidente do Ibama, ao menos 5% do bioma foi queimado até o momento, em um ano de seca e incêndios históricos.
Na semana passada, o Ministério Público do Mato Grosso do Sul anunciou que doze fazendeiros são alvo de um inquérito por serem proprietários de imóveis rurais onde podem ter iniciado focos de incêndio no Pantanal.
"Mas identificar os agentes causadores de um incêndio é muito difícil", reconhece Agostinho.
Isso porque, como apontam especialistas, é preciso identificar onde o incêndio teve início e o responsável por aquela terra que, muitas vezes, é pública e está sendo ilegalmente ocupada.
"Esse tipo de desmatamento [com fogo], feito com base na ilegalidade, na exploração de recursos, é muito mais difícil de combater", completa Ane Alencar.
Entre 2019 e 2021, mais da metade (51%) do desmatamento da Amazônia ocorreu em terras públicas, as chamadas Florestas Públicas não Destinadas (FPNDs).
São áreas que ainda aguardam destinação do Estado para conservação ou uso sustentável.
Os números foram levantados pelo Projeto Amazônia 2030, uma iniciativa do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia, do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, da Climate Policy Initiative (CPI) e do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio.
Por isso, as mudanças climáticas, o El Niño e a criminalidade tornam a Amazônia um lugar bastante propício a incêndios neste momento.
"A Amazônia está um barril de pólvora por causa da seca, politicamente em alvoroço por causa das eleições municipais e, além disso, está dominada pelo crime", resume Alencar.
"Os esforços e as etratégias para combater o desmatamento, portanto, têm que ser muito mais inovadores do que antes".
Para Agostinho, o incêndio ainda é tratado como um crime de menor potencial ofensivo. "Precisamos aperfeiçoar isso", diz.
Ele aponta a obrigatoriedade de brigadas próprias de combate imediato nas propriedades em áreas sensíveis, revisão de atos normativos, preparo da comunidade para uma pronta resposta e maior controle dos Estados como parte desse aperfeiçoamento.
Para Ane Alencar, do Ipam, além de seguir com a redução do desmatamento, diminuir o uso de fogo e controlar mais as queimadas são medidas que deveriam ser tomadas imediatamente.
Fonte: g1