A crise das queimadas colocou em debate a medição da qualidade do ar no Brasil. Dados do Ministério da Saúde indicam que, entre 2019 e 2021, mais de 300 mil pessoas morreram por doenças respiratórias causadas por fumaça e poluição.
? E apesar do país usar satélites do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) para monitorar a qualidade do ar há mais de 20 anos, pesquisadores afirmam que o governo federal não solicitou essas análises durante a crise.
A poluição e fuligem no ar são como um “inimigo invisível”, que causa problemas respiratórios graves, principalmente entre crianças e idosos. Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem um padrão para definir quando as pessoas devem evitar exposição. É com base nisso que os governos tomam decisões, como suspender atividades ao ar livre, até as aulas.
O governo federal oferece dois principais sistemas:
Mas isso não acontece por falta de dados: existe um monitoramento oficial feito pelo Inpe, que também acompanha as queimadas e o desmatamento. O laboratório de análise da qualidade do ar do instituto existe desde 2003 e custa aos cofres públicos cerca de R$ 1,5 mil ao dia para a análise, mas ele não vem sendo usado pelo governo federal, segundo fontes do próprio instituto ouvidas pelo g1.
Enquanto os dados oficiais ficam invisíveis, nas últimas semanas as redes sociais foram tomadas por números de uma empresa suíça que vende monitores de qualidade do ar, a IQAir, que colocou São Paulo como a cidade com o pior ar do mundo – o que é impossível de afirmar, segundo especialistas.
Abaixo, nesta reportagem o g1 revela os bastidores do monitoramento do ar no Brasil, expondo falhas que ainda colocam nossa saúde em risco, e explica por queporque o país não utiliza seu melhor banco de informações sobre o assunto.
A qualidade do ar é uma informação importante para a saúde pública. Neste ano, entre janeiro e julho de 2024, quase 650 mil pessoas foram atendidas em hospitais com doenças respiratórias relacionadas às queimadas e à poluição.
No ano passado, o governo federal lançou uma política de qualidade do ar e criou um índice (IQAr) para analisar os impactos à saúde, por isso os dados ficaram com o Ministério da Saúde.
Junto com o Ministério do Meio Ambiente, a pasta também criou o Painel Vigiar, que usa dados do observatório europeu Copernicus (Climate Data Store CAMS Global Reanalysis - EAC4), com satélites que capturam informações a uma resolução de 40 km.
Enquanto isso, uma outra pasta, o Ministério da Ciência e Tecnologia também mantém um monitoramento, mas com cobertura nacional.
?? Os dados do Inpe também são produzidos por satélite, mas a uma resolução melhor que a do Centro Europeu, de 15 km, o que o torna mais preciso. O Instituto analisa a quantidade de material particulado fino na atmosfera e, assim, identifica a fuligem e a poluição.
Com isso, é gerado um mapa que consegue não só mostrar a quantidade por estado, mas também a previsão da circulação da fumaça pelo país ao longo dos dias. (Veja a imagem abaixo)
A responsável pela análise é Karla Longo, pesquisadora do Inpe desde 2003 e que acaba de voltar da Nasa, agência espacial americana, onde também fazia a análise de poluição e fuligem na atmosfera. Ela explica que os dados são o melhor banco de informações que o país tem, mas que não vem sendo usado.
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Estação de Monitoramento da Qualidade do Ar da UFMS, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. — Foto: Leandro Benites/AGECOM/UFMS
Ainda segundo a especialista, o Brasil deveria seguir o exemplo dos Estados Unidos, onde dados de satélites são cruzados com estações terrestres para validação. Enquanto isso não acontece, a melhor opção continua sendo a rede nacional por satélite.
“O governo está sugerindo que os estados coloquem estações. Só que esse monitoramento exige muita ciência para ter informações confiáveis. A política nacional não tem uma determinação, por exemplo, de onde são as áreas estratégicas que devem ter as estações”, explica.
Ela diz que já fez projetos para estados brasileiros implantarem o sistema e somar isso com os dados do Inpe, mas nenhuma proposta avançou. “Até agora, monitorar a qualidade do ar não parecia ser uma prioridade”, explica.
O g1 perguntou ao Ministério da Saúde e ao Ministério da Ciência e Tecnologia o porquê os dados do Inpe não foram pedidos e não vêm sendo usados, mas até a última atualização desta reportagem a pasta não esclareceu os motivos.
No começo de setembro, o Inpe publicou uma nota de esclarecimento sobre o uso de dados da IQAir, uma plataforma suíça que vende monitores de qualidade do ar. O motivo foi a repercussão de números alarmantes sobre a poluição atmosférica, que colocaram São Paulo entre as cidades "mais poluídas do mundo" de um ranking de apenas 120 grandes metrópoles.
A IQAir vende os aparelhos por U$ 300. Para comprar um desses você não precisa de qualquer qualificação técnica ou ser um pesquisador. Depois de comprado, é só instalar o dispositivo onde quiser e ele passa a monitorar a temperatura, material particulado inalável fino (MP2,5), CO² e umidade relativa do ar.
?? Segundo pesquisadores, é aí que está o problema: por exemplo, se uma pessoa compra o equipamento e instala em uma avenida movimentada, onde há muita poluição, é somente com base nesse dado isolado que a análise do ranking da empresa é feita.
O próprio Inpe esclareceu que, com seus dados de referência, não participa da rede da IQAir e não valida os índices e rankings divulgados pela empresa.
Além disso, especialistas e entidades ouvidos pelo g1 alertam que as informações coletadas pela plataforma podem não refletir a realidade local de maneira precisa. Isso porque como são manuseados por qualquer pessoa, não têm um parâmetro para todas as estações pelo país.
"A rede de medidas no Brasil é limitada e com uma cobertura deficiente, o que resulta em estimativas e não em dados precisos para todas as cidades do país", diz Marco Aurélio de Menezes Franco, professor do Departamento de Ciências Atmosféricas da USP.
Por exemplo:
"Os dados da CETESB são rastreáveis e confiáveis, enquanto as informações que vêm sendo utilizadas para classificar São Paulo em um ranking de cidades mais poluídas são provenientes de uma empresa que comercializa sensores e purificadores de ar, que usa recortes horários de diversas fontes, não certificadas, e processa esses dados com inteligência artificial", informou a companhia, em nota.
Chamas de incêndio florestal em uma área da Floresta Nacional de Brasília, no último dia 4 de setembro. — Foto: REUTERS/Adriano Machado
Para o monitoramento da qualidade do ar, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) recomenda, em seu Guia Técnico para o Monitoramento e Avaliação da Qualidade do Ar, que sejam utilizadas estações de referência certificadas, que fazem parte do sistema MonitorAr.
A iniciativa reúne estações de referência certificadas que medem a concentração de poluentes atmosféricos, mas isso só existe para poucas algumas cidades. Apenas 13 dos 26 estados do país contam com essas estações automáticas e a maioria está na Região Sudeste.
Por causa disso, quem vive no Amazonas, por exemplo, tem como referência dados de qualidade do ar do Pará. Ou seja, a realidade e a informação são diferentes.
Não bastasse essas divergências, Menezes destaca que, para determinar se uma cidade é a mais poluída do mundo, seria necessário analisar a média dos índices ao longo de um período de tempo maior.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, avalia a qualidade do ar usando um banco de dados que compila medições anuais da concentração de poluentes, como dióxido de nitrogênio (NO2) e partículas de poeira (PM10 e PM2.5).
Esses dados representam a média das concentrações para uma cidade ou região, e não para estações individuais.
A média das concentrações é calculada para representar a exposição típica em uma cidade. A base de dados da OMS é atualizada a cada 2-3 anos e abrange mais de 7 mil localidades em mais de 120 países.
Rio Branco (AC) amanhece encoberto por fumaça na última sexta-feira (20). — Foto: Pedro Devani/Secom-AC
No entanto, a cobertura não é completa e varia devido a métodos de medição diferentes e disponibilidade das informações.
"Eles [a IQAir] utilizam modelos meteorológicos e dados registrados para fazer estimativas, mas para determinar qual cidade é a mais poluída, é necessário analisar a média dos índices ao longo do tempo, já que os valores variam conforme as condições atmosféricas locais", afirma a Climatempo, também em nota.
A empresa, que oferece serviços de meteorologia há mais de 30 anos, também publicou recentemente em suas redes sociais um esclarecimento sobre o assunto, depois da divulgação do ranking da IQAir viralizar.
Na publicação, a Climatempo alertava para o fato de que as comparações entre diferentes cidades devem ser feitas com cautela, devido justamente às variações nos métodos de monitoramento e nas condições ambientais.
Além disso, a empresa enfatiza que os rankings de qualidade do ar podem ser enganosos se baseados em dados não homogêneos, o que pode distorcer a percepção da realidade sobre a poluição em cada local.
Ao g1, um porta-voz da IQAir explicou que a empresa usa dados de satélite para estimar a qualidade do ar em locais sem monitores terrestres, mas se recusou a comentar sobre o método específico aplicado em cidades sem seus equipamentos ou estações automáticas.
“A IQAir incorpora vários protocolos de garantia de qualidade, tanto como fabricante de sensores quanto como agregadora de dados, para garantir que estamos fornecendo os dados mais precisos possíveis”, disse.
Ainda segundo o porta-voz, os dados que abastecem a plataforma passam por um controle automatizado que envolve verificações estatísticas e ajustes.
“Os dados que não atendem aos nossos padrões de controle de qualidade estabelecidos são colocados em quarentena para uma revisão secundária e não são disponibilizados publicamente na plataforma até serem verificados. Os dados de sensores de baixo custo passam por um rigoroso processo de revisão antes de serem incluídos na plataforma da IQAir”, acrescentou.
A CETESB (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo realiza medições da qualidade do ar há 40 anos, por meio de equipamentos certificados e de referência mundial. Nossa rede automática tem 63 estações fixas e uma estação móvel, que monitoram a qualidade do ar em 36 municípios. A rede manual é composta por 22 estações, que monitoram 15 municípios. Usamos padrões federais de classificação da qualidade do ar, instituídos pelas resoluções Conama 491/2018 e 506/2024, que embasam o decreto 59.113/2013.
Os dados da CETESB são rastreáveis e confiáveis, enquanto as informações que vem sendo utilizadas para classificar São Paulo em um ranking de cidades mais poluídas são provenientes de uma empresa que comercializa sensores e purificadores de ar, que usa recortes horários de diversas fontes, não certificadas, e processa esses dados com inteligência artificial.
Nosso Mapa de Qualidade do Ar oferece informação em tempo real, gratuita e disponível a todos, apresenta as medições em índices de qualidade, de acordo com metodologia prevista no decreto (Boa, Moderada, Ruim, Muito Ruim e Péssima).Esses índices são calculados com base nas concentrações, mas não podem ser comparados com a tabela de concentrações da OMS, por se tratar de dados diferentes. Os índices são uma forma de tornar mais compreensível para a população o tema da qualidade, facilitando o entendimento e ampliando a transparência.