Foi em 1º de julho de 1994, uma sexta-feira, há 29 anos, depois de mais de um ano de preparação e transição, que as notas do real passaram a circular pela primeira vez no Brasil e se tornaram a nova — e, até agora, definitiva — moeda oficial do país.
Com o real acabava o cruzeiro, moeda a que substituiu; a sucessão de planos econômicos fracassados que o antecedeu e, principalmente, a hiperinflação.
Em junho, último mês antes da mudança, a inflação do país tinha sido de 47% — em um mês.
Em julho, essa variação caiu para 6,9% e, até dezembro, estava em menos de 2%, pelos dados históricos do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Desde então, a variação mais alta a que o IPCA chegou, em 12 meses, foi de 26%, em 2003. É a metade, em um ano, da variação que teve em apenas um mês naquele junho de 1994.
Atualmente, o IPCA está em 4%. Nos piores momentos, em 1990, a inflação anual brasileira passou dos 6.000%.
Isso significa que se, no começo do ano, um pão custasse Cr$ 1 (1 cruzeiro), ao fim já valeria Cr$ 61.
Nos apenas oito anos entre 1986 e 1994, o Brasil teve quatro moedas e seis planos de choque contra os preços galopantes, sem contar o real.
Invariavelmente, depois de afundar nos primeiros meses, a inflação voltou com força total em todas as tentativas.
As moedas brasileiras desde 1986:
“O nome da mágica é Fernando Henrique Cardoso”, diz Edmar Bacha, um dos economistas que entraram para o governo do então presidente Itamar Franco, ainda em 1993, para elaborar o Plano Real.
“As questões técnicas já tinham sido estudadas com muito detalhe pelos economistas da PUC desde 1983. O que faltava era uma união sadia da técnica com a política e que, nos planos anteriores, não foi possível fazer por diversas circunstâncias”, complementa o economista mineiro, ex-assessor da Fazenda, ex-presidente do IBGE e do BNDES, criador do termo “Belíndia” e imortal da Academia Brasileira de Letras.
Fernando Henrique Cardoso, antes de ser eleito presidente em primeiro turno no fim de 1994, no rastro do grande sucesso do plano que apadrinhou, foi chamado por Itamar para assumir o Ministério da Fazenda em maio de 1993 e assumir a missão de, mais uma vez, tentar estabilizar a moeda do país.
Foi o quarto ministro de Itamar na pasta em seis meses.
Foi ele — que é sociólogo, e não economista — quem, ao lado do presidente do Banco Central, Pedro Malan, montou a equipe que, em poucos meses, deveria desenhar e colocar o novo plano de pé.
Bacha já havia capitaneado a primeira dessas tentativas de estabilização, o Plano Cruzado, em 1986, no governo de José Sarney.
Gustavo Franco, André Lara Resende, Pérsio Arida e Winston Fritsch são outros economistas que, ao lado dele, formaram o núcleo duro do Plano Real.
Em comum entre eles, todos ligados ao PSDB, havia o fato de terem estudado ou lecionado juntos na PUC-Rio, um dos grandes celeiros acadêmicos da economia monetária à época; de terem de alguma maneira se envolvido nos planos anteriores, e de serem, no momento e até hoje, alguns dos principais estudiosos de inflação e das teorias da moeda no Brasil.
Bacha, o mais velho, contava 51 anos naquele 1993 em que se reuniram. O mais novo, Gustavo Franco, tinha 38.
“Especialmente eu e o Pérsio, que participamos do Plano Cruzado, estávamos muito conscientes da importância de não sermos meramente tecnocratas”, conta Bacha.
O fator político que, na análise de Bacha, foi o primeiro grande diferencial do Plano Real, estava no longo, amplo e aberto diálogo que o governo, sob a costura do ministro Fernando Henrique, manteve com o Congresso e a sociedade, dois atores já vacinados e bastante céticos a novas promessas de fim da hiperinflação.
Estávamos decididos que não íamos fazer um plano de surpresa como foram todos os outros
O presidente José Sarney, por exemplo, anunciou na manhã de 28 de fevereiro de 1986, em um pronunciamento na TV, as regras do Plano Cruzado que passariam a valer no dia seguinte.
Elas incluíam a mudança de moeda, o corte de três zeros no dinheiro, o fim dos reajustes automáticos dos salários e o congelamento de todos os preços.
O confisco da poupança, um dos pilares do Plano Collor, foi divulgado e passou a valer em 16 de março de 1990, um dia depois de o novo presidente tomar posse.
“Íamos fazer um plano pré-anunciado, com diversas etapas, e a gente só ia passar de uma etapa para a outra quando o Congresso tivesse aprovado a anterior”, conta Bacha sobre o Plano Real.
“Foi um plano muito intensivo em negociações com o Congresso.”
A primeira grande fase a que o então assessor do Ministério da Fazenda se refere foi um pacote de ajuste fiscal, lançado ainda em junho de 1993, com a intenção de fazer uma limpeza nos excessos das contas públicas e evitar desequilíbrios que poderiam aparecer, depois, com a nova moeda.
A segunda, em março de 94, foi a aplicação da URV, a moeda virtual que foi usada por quatro meses como uma espécie de taxa de câmbio imaginária, de transição, entre o cruzeiro e o real.
O real, propriamente, só começaria a circular e estaria plenamente estabelecido em julho de 1994, um ano e um mês depois do primeiro passo.
De acordo com o professor e ex-diretor do Departamento de Economia da PUC-Rio, Luiz Roberto Cunha, outro grande diferencial do Real em relação aos planos antecessores foi o fato de ter retirado da metodologia todo tipo de intervenção direta do governo.
Não teve intervenção. Não teve controle de preços, não teve confisco, não interferiu em contratos. Os preços ficaram livres, não houve grandes perdas nos salários. Ninguém perdeu.
Cunha, que integra a docência da PUC-Rio desde 1971, compartilhou os corredores e foi colega ou professor de todos os que foram formar a turma do Real no governo, e chegou a acompanhar algumas das reuniões.
Foi Cunha quem chefiou, por diversas vezes, nos anos de 1970 e 1980, justamente o departamento do governo responsável pelo controle de preços — o Controle Interministerial de Preços (CIP), uma das heranças da ditadura.
Os preços de todas as indústrias do país tinham que passar pela aprovação do CIP antes de serem reajustados, um rito que, nos piores momentos, poderia ser mensal.
Assim, era o governo quem controlava e, ao mesmo tempo, institucionalizava, a indexação, o mecanismo que corrige automaticamente os preços pela inflação e, com isso, pode perpetuar a inflação passada no preço atual das coisas.
“A correção monetária foi a base para hiperinflação”, diz Cunha.
“Tudo era indexado. Os salários, a dívida pública, os preços, do parafuso aos automóveis. É o efeito nefasto dessa indexação que os planos tentaram combater, e que acabou de vez com o real.”
O freio na hiperinflação sem intervenção, de acordo com o professor da PUC, foi conseguido graças ao outro grande diferencial do Plano Real, este do lado técnico, e não político: a URV, sigla para Unidade Real de Valor.
A ideia de uma moeda virtual para indexar a verdadeira, como fórmula para fugir da hiperinflação, foi concebida em ensaios que Arida e Lara Resende já tinham feito ainda no início dos anos 1980.
A teoria até ganhou um apelido — “Larida” — e chegou a ser cogitada no Plano Cruzado, em 86, mas acabou na reserva.
Com Fernando Henrique e Malan, por fim, alguém decidiu por arriscá-la.
Em março de 1994, a URV foi emparelhada ao dólar — 1 URV valia, aproximadamente, US$ 1 – e, nesses meses de transição, passou a ser tabelada, em todas as vitrines e prateleiras, ao lado dos preços que continuaram a ser pagos e a galopar livremente em cruzados novos.
No primeiro dia em que foi estabelecida, em 1º de março de 1994, 1 URV — e, também, US$ 1 – valiam CR$ 647,50.
No último, 1º de julho, 1 URV já custava CR$ 2.750, graças à inflação.
Neste dia, a URV foi convertida para real, e o que custava CR$ 2.750 passou a custar R$ 1; R$ 1 ficou valendo US$ 1, e todo o resto, em cruzados, desapareceu.
Com a moeda velha, desapareceu também a variação desenfreada que o seu valor sofria diariamente. E, assim, acabou a hiperinflação no Brasil.
O custo para pagar o fim da hiperinflação, porém, não foi pequeno.
Manter o câmbio fixo em US$ 1, um dos pilares que mantiveram o novo sistema de pé, custou todas as reservas internacionais do país, fez a dívida externa disparar e obrigou o Banco Central, já no fim dos anos de 1990, a chutar os juros para mais de 40%, na tentativa de conseguir atrair para dentro do país todos os dólares necessários para continuar pagando a conta.
O câmbio administrado teve um papel importantíssimo no começo. Manteve uma conexão com o dólar enquanto as pessoas ainda não tinham a confiança plena de que essa nova moeda valia tanto quanto nós estávamos dizendo que ela valia.
O desequilíbrio que ele deixou para as contas externas explodiu em 1999, quando uma sucessão de crises internas e externas levaram o governo de Fernando Henrique Cardoso, já reeleito, a mudar para o regime de câmbio flexível.
“Mas os políticos aprenderam que o povo não gosta de ter inflação”, avalia Bacha sobre os legados deixados pelo real.
“A inflação é um roubo, um assalto ao bolso do povo. E os políticos entenderam isso.”