Nota do editor: Esta reportagem inclui detalhes de agressões sexuais e violência.
Os gritos irromperam no ambiente enquanto um carro cheio de mulheres e crianças atravessava o Chade depois de deixar o Sudão arrasado pela guerra. Uma mulher, nos estágios finais da gravidez, estava no banco de trás, sem vida e empapada de sangue. Seus filhos choravam junto ao corpo.
“Eu estava sentada do lado dela”, contou Butheina Nourin, ao descrever sua perigosa fuga da região sudanesa de Darfur, ao lado da mulher morta. “O nome dela era Fátima. Não sei o sobrenome”.
Combatentes do poderoso grupo paramilitar sudanês, formado pelas Forças de Apoio Rápido (RSF na sigla em inglês) e seus aliados armados, tomaram postos de controle ao longo de sua rota, disse Nourin, exigindo dinheiro de todos os passageiros em troca de passagem segura.
O método brutal de extorsão é generalizado em Darfur, de acordo com dezenas de testemunhas que contaram incidentes semelhantes à CNN.
A vasta região ocidental do Sudão é o local apontado como o do primeiro genocídio do século 21, com milícias árabes em grande parte matando sistematicamente grupos não árabes africanos que compõem a maioria da população local.
Um crescente conjunto de evidências, incluindo relatos em primeira mão, depoimentos de especialistas e vídeos verificados nas redes sociais, sugere que a RSF reviveu essas táticas em Darfur e as exportou para outras partes do Sudão enquanto luta contra os militares do país.
Desde meados de abril, o chefe do exército do Sudão, Abdul Fattah al-Burhan, vem travando uma ofensiva pelos ares, bombardeando posições da RSF em áreas residenciais e infligindo mortes civis.
Enquanto isso, o chefe da RSF, Mohamed Hamdan Dagalo (Hemedti), fortaleceu suas posições militares táticas, expulsando civis de suas propriedades e empregando o roteiro previamente desenvolvido em Darfur: matar, aterrorizar e expulsar.
A história de Fátima é apenas um exemplo. Testemunhas oculares recordaram que, no momento em que o carro que a levava chegou na última das posições da RSF, Fátima tinha ficado sem dinheiro. Naquele momento, apenas alguns quilômetros separavam a mulher, seus dois filhos e o bebê em seu ventre da segurança do Chade.
“Ela disse aos combatentes que gastara todo o seu dinheiro em outros pontos de controle”, disse a testemunha ocular Nourin. “Eles atiraram nela imediatamente. A bala passou por um lado de sua cabeça e saiu do outro. Todos nós gritamos”.
O interesse, a influência e o apoio material na região do notório Grupo Wagner, formado por mercenários russos, também estão exacerbando a violência, segundo a CNN.
De acordo com autoridades de inteligência, testemunhas oculares nos principais pontos de trânsito e a análise de informações em código aberto feita pela CNN, o Grupo Wagner tem armado a RSF usando rotas de abastecimento que atravessam a região de Darfur.
“Não há dúvida do papel do Grupo Wagner nisso, que tem fornecido à RSF armas e suprimentos através de Darfur”, disse um funcionário da inteligência de um país ocidental à CNN. “Tudo segue o modus operandi do Wagner. Criar caos e conquistar o poder”, acrescentou outra fonte de inteligência ativa na região.
Uma investigação da CNN feita ao longo de meses descobriu um aumento nos suprimentos do Wagner para a RSF desde a preparação para o conflito do Sudão. Os armamentos parecem ter sido contrabandeados para o Sudão em alguns pontos-chave de tráfego: a base aérea e naval da Rússia na região costeira síria de Latakia, as bases do Wagner na Líbia e o aeroporto de Bangui na República Centro-Africana.
As armas também foram transportadas para o Sudão por rotas terrestres, estendendo uma relação robusta que antecedeu a guerra, na qual o exército sudanês, liderado pelo general Burhan, cedeu ao governo da Rússia grandes concessões na indústria de mineração de ouro do país em troca de armas e apoio político.
Essa troca ajudou a financiar a invasão russa na Ucrânia, ao mesmo tempo em que entrincheirava a junta militar do Sudão, especialmente Hemedti, que teve uma ascensão meteórica ao poder depois da saída do líder anterior da RSF, Janjaweed.
Os Janjaweed – ou “demônios a cavalo” – foram mais tarde absorvidos pelas forças de segurança do Sudão. O ex-ditador do Sudão Omar al-Bashir deu a Hemedti um apelido: Hemayti, “meu protetor”.
Antes da atual guerra do Sudão eclodir em meados de abril, Hemedti era a segunda pessoa mais poderosa do governo.
Ele se aliou com seu agora inimigo, Burhan, para sufocar um movimento democrático que ajudou a derrubar o ditador Bashir em 2019. Os dois generais então se alinharam para liderar um golpe em 2021 contra um governo de transição reconhecido internacionalmente, e esmagaram um movimento de protesto pró-democracia. Mais de 100 manifestantes foram mortos nas manifestações antigolpe de 2021.
A rivalidade deles surgiu em uma guerra aberta em meados de abril, e a reportagem da CNN descobriu que o Grupo Wagner abandonou seu apoio irrestrito à junta militar, a fim de apoiar um lado no conflito – a RSF.
A ONU diz que pelo menos 860 pessoas foram mortas desde o início do atual conflito e cerca de 6 mil ficaram feridas em todo o país desde 3 de junho. Cerca de meio milhão de pessoas fugiram do Sudão e mais de 1,4 milhão são deslocados internos.
Um corte quase total das telecomunicações em Darfur faz com que a maior parte das informações sobre a violência no país seja conhecida pelos relatos de refugiados recém-chegados.
Relatos de atrocidades cometidas por combatentes da RSF e suas milícias aliadas, claramente identificadas por seus uniformes, são consistentes em dezenas de testemunhos. Eles incluem assassinatos arbitrários, a destruição total de infraestruturas civis vitais, o saque de casas e hospitais e até mesmo estupros em massa.
“Eu vi o rescaldo dos incêndios nos centros de deslocados internos (IDP) e testemunhei os saques da RSF na casa”, contou Hussein Haran, um ativista de direitos humanos que estava na cidade de Darfur, em el-Fasher, quando os combates eclodiram antes de fugir para Geneina, outra cidade da região, e depois para o Chade.
“Até os hospitais foram saqueados. No hospital de pesquisa de Geneina, eles roubaram o banco de sangue e derramaram o sangue pela rua”, disse Haran, que trabalha na Iniciativa Estratégica para as Mulheres no Chifre da África (SIHA), à CNN.
“A única maneira de explicar isso é que eles não queriam deixar uma gota de sangue para os africanos étnicos [que não reivindicam ancestralidade árabe] se tratarem no hospital. É um projeto de limpeza étnica”, acrescentou.
Na quarta-feira, a RSF raptou e executou o governador do Darfur Ocidental, Khamis Abbakar, de acordo com militares sudaneses. A RSF negou responsabilidade pelo assassinato, culpando “bandidos”, sem fornecer mais detalhes.
Algumas alegações são quase impossíveis de verificar durante o combate ativo, mas imagens de satélite da área pintam uma imagem clara. Pelo menos três cidades e dez aldeias em Darfur foram incendiadas só no mês passado. Em Geneima, o fogo também destruiu um mercado de alimentos, que abriga mais de 100 mil pessoas deslocadas internamente pela violência nas últimas duas décadas, e uma escola que virou centro de IDP.
Muitos dos entrevistados retratam uma RSF fortalecida, ainda mais armada do que sua encarnação anterior há duas décadas. “A escala dos combates em Darfur hoje não se compara com a do início dos anos 2000”, afirmou Kholood Khair, fundador do Confluence Advisory, um think tank baseado em Cartum. “Os Janjaweed de 2003 com certeza não fariam o que o RSF de 2023 fez”.
Khair acrescentou: “Mas Hemedti, tendo enriquecido e se posicionado tão bem, apesar do tumulto dos últimos quatro anos, está em posição para fazer isso”.
Mais de 300 mil pessoas foram mortas na campanha de chacina étnica pelos Janjaweed e seus aliados da milícia árabe no início dos anos 2000. Um número preciso de mortes é quase impossível de ser contabilizado, já que muitos dos mortos foram despejados em valas comuns. O então presidente Bashir foi acusado pelo Tribunal Penal Internacional em 2010 por crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio em relação ao conflito de Darfur. Ele ainda não foi entregue pelas autoridades sudanesas ao TPI para ser julgado.
Desde então, a RSF estendeu o seu alcance para além das fronteiras do Sudão para a Líbia e, num passo fundamental para a influência internacional de Hemedti, também para o Iêmen, onde o grupo contribuiu no devastador esforço militar saudita e dos Emirados para esmagar os rebeldes houthi apoiados pelo Irã.
O poder de Hemedti alcançou novos patamares depois de ajudar a derrubar Bashir em 2019 e assumir o posto de vice-líder da junta militar. Os laços dele com os Emirados Árabes Unidos e a Rússia pareciam ter consolidado o seu poder político e ajudaram a transformá-lo num dos homens mais ricos do Sudão.
Outra característica da limpeza étnica em Darfur no início dos anos 2000 foram os estupros em massa, amplamente documentados por especialistas e grupos de direitos humanos. De acordo com testemunhas, essa tática brutal voltou com plena força.
“A estratégia de estuprar mulheres tem sido amplamente utilizada pela RSF”, disse Hala al-Karib, diretora regional do grupo de direitos das mulheres SIHA. “A RSF a usou em Darfur para humilhar o povo nativo Darfuri por 20 anos. “A parte triste é que eles ficaram mais confortáveis com isso, porque nunca foram responsabilizados”.
Dezenas de incidentes de agressão sexual, incluindo estupros coletivos e ataque a menores de idade, foram confirmados por grupos sem fins lucrativos e especialistas desde o início do último conflito. A maioria dos casos aconteceu em Darfur. A Organização das Nações Unidas diz que recebeu relatos de agressão sexual contra trabalhadores humanitários na região.
No final de maio, a Unidade de Combate à Violência contra a Mulher do governo sudanês registrou pelo menos 36 casos de agressão sexual na capital Cartum e 25 casos em Darfur, com 18 perpetrados por homens em uniformes da RSF.
Mas ativistas sudaneses afirmam que os ataques são muito mais difundidos. Em um caso descrito pela SIHA, 24 mulheres e meninas foram raptadas no hotel Daman, no sul de Darfur, e repetidamente estupradas por três dias. A mulher mais velha tinha 56 anos e a mais nova, 14, segundo a SIHA.
Estupros também estão sendo relatados na capital, onde a RSF repetidamente invadiu casas, expulsando os moradores e saqueando seus pertences. Na época, a RSF combatia ataques aéreos pelos militares sudaneses.
Em um vídeo obtido e verificado pela CNN, um combatente é visto estuprando uma mulher no pátio da frente de uma casa de Cartum, enquanto outro, vestindo uniforme RSF, fica do lado de fora vigiando.
“Para quem acha que não há estupro, isso é estupro”, diz a pessoa que secretamente grava o vídeo do outro lado da rua. “E esse cara está lá para se certificar de que o agressor está protegido”, continua a testemunha, apontando o homem vestindo uniforme RSF e agindo como vigia. “Isso está acontecendo em público, em uma rua de movimento, com total descaramento e insolência”.
Em uma gravação de voz obtida pela SIHA e passada à CNN sobre outro incidente, uma mulher da capital disse que foi forçada a assistir quando suas duas filhas jovens eram estupradas por combatentes da RSF. “Eles nos espancaram usando armas”, contou. “Nós lhes dissemos que não tínhamos dinheiro nem ouro. Eles estupraram minhas duas filhas enquanto gritavam a plenos pulmões. A gente também gritava”, contou a mulher com a voz embargada. “Eu tive que segurar meu filho para que ele não tentasse salvar as irmãs. Eu disse que, se ele fosse ali, ele iria ser crivado de balas”.
As atrocidades ficaram mais intensas conforme a guerra avançou, segundo ativistas e especialistas. Eles argumentam que a impunidade impulsionou a ascensão de Hemedti ao poder desde sua época como líder dos Janjaweed no início dos anos 2000. “Ninguém no Sudão tem mais sangue nas mãos do que Hemedti”, sentenciou Eric Reeves, analista do Sudão.
Em um comunicado à CNN, a RSF negou veementemente as alegações de estupro, assassinatos arbitrários e alvos de infraestrutura civil. O grupo acusou o exército sudanês de “bombardear indiscriminadamente” civis e afirmou que os uniformes da RSF usados pelos perpetradores em testemunho eram “falsificados”.
“A RSF defende o direito internacional e se dedica a proteger o Sudão”, disse o comunicado. “Quaisquer ações inconsistentes com este princípio não refletem nossos valores, e estamos comprometidos em garantir que aqueles que violam a lei sejam responsabilizados”.
O grupo também negou ligações com o Grupo Wagner.
Nos últimos anos, Hemedti foi convidado para capitais em todo o mundo, incluindo Moscou, Cairo e Abu Dhabi.
Ele e suas forças conseguiram mais relevância depois de reprimir rotas de contrabando de pessoas que operam do Sudão para a Líbia, como parte de uma viagem de imigrantes e refugiados para a Europa. A União Europeia enviou pelo menos US$ 200 milhões (cerca de R$ 1 bilhão) ao governo do Sudão na última década para conter a migração.
Hemedti se gabou do feito em entrevistas com a mídia internacional. “A UE perde milhões no combate à migração, é por isso que tem que nos apoiar”, disse à Al Jazeera em 2017.
“A comunidade internacional criou este monstro. Eles estão estuprando as mulheres porque podem”, disse a ativista dos direitos das mulheres Karib sobre a RSF. “Eles conhecem as ramificações. Eles sabem os impactos. Eles sabem o quanto isso é aterrorizante. As pessoas fogem. É um método testado e comprovado de Darfur que agora está sendo usado em todo o Sudão”.
Em um comunicado à CNN, o Departamento de Estado dos EUA disse que “recebeu relatos extremamente perturbadores sobre um aumento do número de ataques, violência baseada em gênero, incluindo violência sexual. A maioria desses atos é supostamente atribuível à RSF”.
O medo agora entre os sudaneses e alguns na comunidade internacional é que o envolvimento do Grupo Wagner na guerra tenha ajudado a tornar Hemedti “maior” e “mais cruel”.
“A realidade é que Hemedti é incrivelmente útil para o Grupo Wagner”, disse a autoridade de inteligência ocidental à CNN. “Ele tem laços tribais e de parentesco em toda a África e há uma incrível preocupação com os danos que uma RSF maior e mais danosa – encorajada e apoiada pelo Wagner – poderia causar não apenas no Sudão, mas em toda a região”.
A presença e os interesses financeiros do Grupo Wagner na África estão bem documentados, mas a violência no Sudão parece ter dado ao grupo uma nova oportunidade.
O chefe do Grupo Wagner, Yeveny Prigozhin, não respondeu diretamente ao pedido da CNN para comentar o apoio à RSF e seu papel no abastecimento das atrocidades atuais.
Em um comunicado redigido com sarcasmo, ele disse que o Grupo Wagner havia treinado todos os corpos militares no Sudão, incluindo a RSF, e culpou a interferência americana pelo atual tumulto do país. Ele afirmou que não houve “nenhum crime sexual no Sudão” enquanto Bashir esteve no poder.
O Departamento de Estado também reconheceu a atuação do grupo no Sudão. “O envolvimento com o Grupo Wagner traz mais morte, destruição e instabilidade”, disse o comunicado.
Enquanto isso, a violência continua a se intensificar sem nenhum sinal ainda de que o processo diplomático entre as facções rivais trará um fim permanente ao conflito. Os sudaneses devem se defender enquanto enfrentam o que descrevem como as marcas do genocídio.
“A situação agora é muito pior do que era em 2003. A milícia Janjaweed não era tão poderosa como é agora”, afirmou Hussein Haran, da SIHA, com sede em Darfur. “A RSF é tão poderosa quanto o estado. Eles têm muito mais poder agora e mais capacidades. E estão cometendo genocídio e limpeza étnica”.
Alex Platt, Allegra Goodwin, Celine Alkhaldi e Mostafa Salem, da CNN, contribuíram na reportagem.
Editado por Ed Upright e Laura Smith-Spark
Nota do editor: Esta reportagem não teria sido possível sem as contribuições dos jornalistas sudaneses, que não nomeamos por sua segurança.