“Eu realmente queria ser a fundadora de um festival de literatura em Nova York”, disse Victoria Amelina, escritora e ativista ucraniana, para uma sala cheia de londrinos.
Em 2021, ela fez exatamente isso. O festival não foi em Nova York, nos Estados Unidos, mas em um vilarejo de mesmo nome na região de Donetsk, local onde o marido dela passou a infância. Aguçada e espirituosa, ela sincopou suas histórias de guerra com humor seco.
Sua vida ultimamente foi dedicada a documentar os crimes de guerra russos. E é a morte dela que documenta o último desses crimes.
Em 27 de junho, Victoria estava em Kramatorsk, leste da Ucrânia, em uma pizzaria com um grupo de colegas escritores, quando um míssil russo atingiu o restaurante, que estava cheio de pessoas comuns.
O ataque que tirou a vida de Victoria (juntamente com outras 12 pessoas, incluindo três crianças), foi muito elogiado pelo coronel-general Andrei Kartapolov, chefe do Comitê de Defesa da Duma Russa. Falando na TV russa, ele disse: “O ataque em Kramatorsk foi uma verdadeira beleza. Eu faço reverência para aqueles que planejaram isso. Não é um golpe, mas uma canção. Meu velho coração militar se alegra”.
O coração de Victoria não parou imediatamente. Paramédicos e médicos lutaram por sua vida. Sua família estava por perto, seus amigos em todo o mundo imploravam a todas as forças divinas para prolongar sua vida contra todas as probabilidades. Ela morreu em 1º de julho.
“Quando fundei o Festival de Literatura de Nova York em um pequeno vilarejo chamado Nova York em Donbass, eu estava, é claro, sendo irônica. Afinal, a ironia é o que torna a literatura grande. A auto-ironia fez da vila de Nova York um lugar fantástico. Os russos não têm auto-ironia. Eles são tão sérios sobre si mesmos. Aposto que eles arruínam nossa bela e auto-irônica Nova York com seus rostos russos sérios. Mas os ucranianos vão sobreviver, rir e fazer festivais de literatura, não a guerra – em todas as Nova York possíveis. Eu prometo”, escreveu ela em um tweet duas semanas antes de sua morte.
Enquanto o vilarejo de Nova York estava sendo bombardeado, Victoria viajou pelo mundo contando ao público internacional sobre a cultura ucraniana e alertando sobre sua destruição.
Documentando histórias de pessoas que conheceu em territórios libertados, Victoria encontrou um diário escrito pelo escritor e poeta Volodymyr Vakulenko. Ele o havia enterrado em seu jardim antes de ser sequestrado e assassinado pelos russos nos primeiros meses da invasão em grande escala. O corpo dele foi encontrado em um cemitério coletivo quando as Forças Armadas ucranianas libertaram a região de Kharkiv.
Victoria garantiu que o mundo conhecesse a história de Vakulenko. Postando uma selfie com o diário, enrolado e bem embrulhado em um saco plástico, ela escreveu: “O diário de Volodymyr Vakulenko como o encontrei em solo ucraniano negro em 24 de setembro de 2022, exatamente meio ano depois que Volodymyr o havia escondido antes de ser sequestrado e morto pelos ocupantes. Continuo dizendo a mim mesma que a história de Volodymyr não tem nada a ver comigo; mas tem”.
Em 22 de junho de 2023, cinco dias antes do bombardeio de Kramatorsk, Victoria falou no Book Arsenal, o maior festival literário de Kiev, no lançamento do diário de Vakulenko. “A memória de Vakulenko vive”, ela escreveu depois.
Victoria estava prestes a ir para Paris para um período de residência para escrever um livro sobre os crimes de que havia testemunhado. Ela estava determinada a documentar o assassinato de criativos ucranianos, para evitar o novo “Renascimento Executado”, como ela se referia, remontando à década de 1930, quando toda uma geração de artistas e autores ucranianos foi assassinada pelo regime soviético.
Quando ela falou em Londres em abril, ela evocou uma citação famosa de Mikhail Bulgakov, um representante da “grande cultura russa” que viveu em Kiev, mas era um ardente oponente do Estado ucraniano. “Manuscritos não queimam”, diz o diabo no romance de Bulgakov da era Stalin, o livro “Mestre e Margarita”.
“São os manuscritos russos que não queimam”, observou Victoria. “Manuscritos ucranianos queimam muito bem”.
Muitos manuscritos ucranianos já foram queimados nos incêndios causados pelos bombardeios russos. Muitos mais nunca serão escritos porque seus autores foram mortos nesta guerra. Victoria nunca terminará seu livro sobre crimes de guerra. Seus colegas terão que garantir que as histórias que ela registrou vejam a luz do dia, como ela fez com o diário de Vakulenko. Uma corrente de salvamento que mantém viva a cultura ucraniana.
“Sua morte foi causada por lesões incompatíveis com a vida”, disse a nota divulgada pelo PEN Ucrânia, informando sobre a morte de Victoria.
A primeira vez que li essa frase foi em um documento emitido por uma comissão médica militar para meu irmão Volodya. Seus ferimentos também eram “incompatíveis com a vida”. Ele era um soldado das forças armadas ucranianas, morto em ação em 2017 perto de Popasna, uma cidade 70 quilômetros a nordeste do vilarejo de Nova York. No caminho entre eles, você passa por Bakhmut.
Esses nomes de lugares obscuros do leste da Ucrânia agora são conhecidos em todo o mundo. Nós os reconhecemos porque os russos os arrasaram. Não sobrou nenhuma Popasna. Bakhmut parece um deserto pós-apocalíptico. Nova York ainda está aguentando, mas nenhum festival literário será realizado lá tão cedo.
Assim como as cidades que não existem mais, o mundo está aprendendo os nomes dos escritores ucranianos através de seus obituários. E não é assim que se descobre a literatura de um país.
Podemos continuar dizendo a nós mesmos que a história de Victoria não tem nada a ver conosco. Mas tem. Testemunhamos sua morte como ela testemunhou a de Vakulenko e muitos outros mortos na guerra da Rússia.
Dar testemunho vem com a responsabilidade de garantir a justiça, e essa é uma responsabilidade que devemos abraçar.
*Nota do Editor: Olesya Khromeychuk é historiadora e escritora. Ela é diretora do Instituto Ucraniano de Londres e ensinou história da Europa Centro-Oriental em várias universidades britânicas. Khromeychuk é a autora de “A morte de um soldado contada por sua irmã”. As opiniões expressas neste comentário são dela.