Há dez anos, o Brasil foi tomado pelas chamadas “jornadas de junho”, série de manifestações que se iniciou com insatisfações sobre as tarifas de ônibus e depois agregou pautas e grupos difusos, virando a política brasileira de cabeça para baixo.
Na época, o país era presidido por Dilma Rousseff (PT), que ainda tinha considerável grau de aprovação popular. A partir daquele mês, contudo, um novo ciclo político se iniciaria: vieram, em sequência, a operação Lava Jato, o impeachment da petista e a eleição de Jair Bolsonaro (PL).
Por conta da série de acontecimentos que sucederam aqueles protestos, junho de 2013 passaria a ser chamado de “o mês que não terminou” para acadêmicos, políticos e parte da sociedade.
Para o cientista político e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Sérgio Praça, 2013 divide com 2016 (impeachment de Dilma) e 2018 (eleição de Bolsonaro) o status de anos mais importantes na política brasileira das últimas três décadas.
“Houve uma conjunção rara de fatores que impactou a política brasileira de forma decisiva: o início da crise econômica, as manifestações populares, e o início da ideia da Lava Jato”, diz, sobre o ano das jornadas.
Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Ricardo Fabrino Mendonça afirma que, de fato, é possível estabelecer laços entre os atos de 2013 e os acontecimentos políticos que os sucederam, mas destaca que “essas conexões não são de caráter simples e unilinear”.
“Não vejo junho de 2013 como a causa dos processos que sucederam aquilo ali, mas o período é atravessado por muitos dos fatores que se manifestam de outras formas nos anos subsequentes”, aponta.
Nessa mesma linha, a cientista política Deysi Cioccari acredita que aqueles atos ainda “não foram totalmente compreendidos” e, por isso, devem ser tratados com cuidado.
“Concordo, sim: 2013 não terminou. Foi o estopim para uma nova política brasileira, mas uma fase que ainda precisa de cuidado e análise crítica”, diz.
O pontapé inicial para os atos de junho se deu no dia 2, quando passou a vigorar na cidade de São Paulo um reajuste de R$ 0,20 para as tarifas do transporte público— na época, a tarifa custava R$ 3. No dia 3 ocorreram as primeiras manifestações, ainda de pequeno porte.
Três dias mais tarde, o Movimento Passe Livre (MPL) realizou ato na Avenida Paulista contra o reajuste. Na mesma data, manifestantes ocuparam a Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, também para protestar contra as tarifas. Voltaram a acontecer protestos nos dias 7 e 11, com registros de depredação.
“No dia 13 de junho, no entanto, ocorre a virada para os atos. O quarto protesto em São Paulo foi duramente reprimido pela Polícia Militar. Entre os feridos, em meio a pancadarias e tiros de bala de borracha, estavam jornalistas”.
“Houve uma solidariedade midiática, com uma série de jornalistas atingidos por bala de borracha, e uma sociedade civil que começa a apoiar aquela forma de se manifestar, vinculadas a toda uma tendência de questionamento do sistema político”, afirma Ricardo Fabrino Mendonça.
O cientista político explica que a efervescência de 2013 se torna compreensível quando considerados fatores como o questionamento por parte da população de “uma ideia mediada de representação” e a “janela de visibilidade” aberta pela Copa das Confederações — que ocorria no Brasil naquele momento.
Ele dá destaque, contudo, ao cenário externo: “Junho de 2013 no Brasil acontece dentro de um ciclo de protestos que tem uma escala maior que o Brasil. Há reverberações do que tinha acontecido no Egito, nos EUA, na Espanha, na Turquia”.
Já no dia 15 de junho, durante o primeiro jogo da Copa das Confederações, em Brasília, a presidente Dilma Rousseff foi hostilizada. O momento marca a incorporação das críticas contra investimentos para eventos esportivos e a exigência de melhora dos serviços públicos às pautas dos atos — demandas que se arrastariam pelos anos seguintes.
Dois dias depois, em Brasília, se dá uma das cenas mais icônicas das jornadas de junho, quando manifestantes subiram a marquise do Congresso Nacional.
Com o avanço dos protestos pelo país, diversos grupos e pautas difusas passaram a integrar o movimento. No dia 20 ocorrem as maiores manifestações, com mais de 1 milhão de pessoas nas ruas de mais de 100 cidades brasileiras.
O professor da UFMG explica que o traço “diverso” daquelas manifestações fazem com que até hoje elas sejam “disputadas” por diferentes grupos.
“A disputa política sobre o que foram aquelas vozes ali nas ruas continua se desdobrando e empurrando junho de 2013 em direções diferentes, e é por isso que aquele mês não acaba”, explica.
Após semanas de protestos, parte das capitais, inclusive São Paulo, onde as manifestações começaram, anunciou a redução das tarifas. Na sequência, Dilma Rousseff fez pronunciamento na TV prometendo “pacto” com governadores e prefeitos para atender às demandas. Com isso, as tensões se arrefeceram, mas as “impressões digitais” das jornadas de junho já haviam se solidificado.
Um levantamento do Datafolha, divulgado no dia 29 de julho de 2013, mostrava a ascensão da insatisfação popular: a porcentagem dos brasileiros que avaliava o governo de Dilma como “bom ou ótimo” era de 30% naquele momento. Três semanas antes, o índice estava em 57%.
Em outra demonstração das mudanças de diretrizes acarretadas pelos atos, no dia 26 o Senado levou à frente projeto que endurecia punição para corrupção, enquanto a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou o fim do voto secreto para cassações de mandatos.
“Foi um movimento que certamente alterou a forma política brasileira e deu origem a novos líderes políticos”, analisa Deysi Cioccari. A especialista destaca, porém, que as pautas que ganharam espaço já habitavam no ideário de parte da população e somente passaram a ganhar eco em lugares como as redes sociais, por exemplo.
Sérgio Praça reitera o processo em que novas demandas surgidas naquela manifestação deu propulsão a grupos políticos de considerável relevância para os acontecimentos que viriam a seguir.
“Não sei se 2013 pode ser exatamente chamado “o ano em que nasceu o bolsonarismo”, mas certamente é o início do MBL — ou ao menos de sua ideia —, e do Vem Pra Rua. Como sabemos hoje, foram organizações importantes para o movimento conservador brasileiro – entre as quais podemos incluir o bolsonarismo”, conclui o pesquisador.
Segundo os especialistas consultados pela CNN, as características que envolvem os atos de dez anos atrás os colocam entre os mais marcantes da história do Brasil pós-redemocratização.
“Há algo que costura Diretas Já (1984), Caras Pintadas (1992) e os atos de 2013. Basicamente, eles têm em comum o volume, a diversidade e algum uso de uma ideia, ao menos nos desdobramentos, de nacionalidade”, analisa Ricardo Fabrino Mendonça.
Para Deysi Cioccari, há similaridades entre as manifestações de 1992, contra o então presidente Fernando Collor, e os atos de 2013, mas os protestos tiveram distinções importantes. Segundo a especialista, o advento das redes sociais é um dos fatores que permeiam essas diferenças.
“A principal diferença está entre os meios de comunicação que permitiram a cada uma reverberar. No caso de 1992, a manifestação ficou dependente da ótica dos meios de comunicação da época — o que não diminui sua credibilidade e importância. As jornadas de junho de 2013 tiveram uma possibilidade de amplificação das vozes”, explica, em referência às redes sociais.
Ricardo Fabrino Mendonça ainda destaca que, apesar do “volume e diversidade” que unem as manifestações de 1992 e 2013, é incorreto afirmar que não houve, nas ruas, atos de resistência popular relevantes durante este intervalo.
Vale ainda destacar que 2013 puxou uma série de atos volumosos que ocorreram nos anos 2010, como os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, além de manifestações favoráveis e contrários a Jair Bolsonaro (PL) durante o mandato do ex-presidente.
Apesar da semelhança, os especialistas apontam que os atos que vieram a seguir carregaram essências diferentes, por seus perfis menos diversos.